O dia 30 de outubro será um momento decisivo na história do Brasil. Concorrendo à reeleição está o presidente em exercício de extrema direita Jair Bolsonaro; contra ele está Luiz Inácio Lula da Silva, que serviu como presidente de 2003 a 2010. O pano de fundo é a grave situação econômica do Brasil, cenário político caótico e um sentimento generalizado de desesperança sobre o futuro.
O país testemunhou altos níveis de precarização do trabalho e desemprego, além de uma inflação altíssima nos últimos anos. Os confrontos entre as esferas de governo e as “fake news” criaram um sentimento de desmoralização na população. A destruição ambiental e os fiascos diplomáticos isolaram o país internacionalmente. A má gestão da pandemia, resultando em mais de 680.000 pessoas mortas, colocou o país de volta no mapa mundial da fome.
“As fronteiras entre direitistas ‘radicais’ e ‘sensatos’ foram borradas nesta nova rodada de neoliberalismo.”
A situação contrasta fortemente com a primeira década dos anos 2000, quando o Brasil tirou milhões de pessoas da pobreza e se tornou protagonista da cooperação no Sul Global. O Brasil sob Bolsonaro ilustra claramente a forma como a agenda neoliberal evoluiu em meio a descontinuidades e reajustes no século XXI – o que é crucial para entender tanto as próximas eleições quanto o que acontecerá em seguida.
Neoliberalismo brasileiro
O neoliberalismo é um estágio específico do capitalismo global em que o livre mercado e o livre comércio são apresentados como o bom funcionamento da economia, a iniciativa privada é apontada como a solução para as necessidades sociais e o Estado é redistribuído para impor coerção e repressão.
Na América Latina, inclusive no Brasil, o neoliberalismo foi inicialmente proposto como um conjunto de reformas que englobava duas ideias principais: desregulamentação econômica e abertura a investidores externos. Bolsonaro fez campanha e venceu em uma plataforma baseada em princípios neoliberais, principalmente a redução de direitos sociais e uma nova rodada de privatização de empresas estatais. Ele tem buscado completar o que o neoliberalismo deixou inacabado nos anos 1990 e início dos anos 2000 devido à resistência popular e aos governos de Lula e sua sucessora, Dilma Rousseff.
Mas Bolsonaro não tem o ar cosmopolita que o neoliberalismo reivindicou anteriormente no Sul Global. Seu mandato faz parte da onda reacionária que vem crescendo no Brasil desde 2014. Intolerância religiosa, homofobia, masculinidade tóxica, papéis tradicionais de gênero e retórica anticientífica têm figurado com destaque nas propostas políticas do governo, como novas investidas sobre a legislação do aborto.
“Bolsonaro tem sido um veículo eficaz para a consolidação de um cenário ideológico e cultural, definido pela disseminação do ethos capitalista para além das classes dominantes.”
Muitos ainda acham incongruente ou mera coincidência a coexistência do que chamo de “duas alas” do governo Bolsonaro – seus valores reacionários e sua plataforma neoliberal. Mas esses valores reacionários não são uma cortina de fumaça que distrai; eles são centrais para a implementação de uma agenda neoliberal. O neoliberalismo exige uma cultura extremamente individualista, manifestada, por exemplo, na defesa do consumismo, da gestão de si e do empreendedorismo. Bolsonaro tem sido um veículo eficaz para a consolidação de um cenário ideológico e cultural, definido pela disseminação do ethos capitalista para além das classes dominantes. Ele também promoveu o militarismo, e uma mentalidade de lei e ordem que apoia o uso da força extrajudicial. Tal cenário não desaparecerá da noite para o dia, mesmo que Bolsonaro perca a reeleição.
Por meio dos pronunciamentos públicos aparentemente irracionais e do anti-intelectualismo do Bolsonaro, a ideia de público, no sentido de um povo inteiro, desaparece. E se o público desaparece, também desaparece a justificativa para a necessidade de qualquer coisa que se assemelhe a um Estado de bem-estar social. Embora Bolsonaro não tenha cumprido todas as reformas que prometeu em 2018 – como a privatização dos correios, setores do sistema prisional e o desmantelamento das carreiras no serviço público – seu governo fez incursões nesse campo, principalmente por meio de uma reforma no sistema previdenciário e a privatização da maior empresa de energia elétrica do país, a Eletrobras.
Mais importante ainda, o governo de Bolsonaro minou o aparato estatal de um jeito nunca visto antes, com enormes implicações para a política público no país avançar.
Destruindo o público
O Brasil é um país em que o nível federal da administração se destaca em abrangência e escala. Um governo federal forte é o que permite ao Brasil oferecer direitos como assistência médica universal gratuita e educação pública gratuita do jardim de infância ao doutorado. Mas Bolsonaro corroeu a capacidade do governo federal de funcionar ao longo de seus quatro anos no poder.
Por um lado, o atual governo cortou o orçamento ou restringiu o poder de várias agências reguladoras. O órgão responsável pelos assuntos das populações indígenas, e o órgão responsável pela seleção de estudantes para universidades públicas, por exemplo, agora não têm meios para cumprir suas atribuições. Tais medidas enfraquecem os serviços e responsabilidades do Estado e também servem como uma entrada para a privatização, inclusive por meio de organizações sem fins lucrativos.
“Os confrontos entre Bolsonaro e João Doria e Sergio Moro, pareciam uma ameaça ao bolsonarismo, mas eram principalmente confrontos de personalidade, sem divergências políticas.”
Por outro lado, Bolsonaro modificou as práticas fiscais do país e delegou o orçamento dos gastos federais aos parlamentares do Centrão. Em troca, esses políticos, espalhados por vários partidos autoproclamados de centro ou de direita, concordaram tacitamente em compor a base de Bolsonaro no Congresso. Ao longo de seu governo, Bolsonaro respondeu ao potencial isolamento político consolidando uma aliança com políticos tradicionais, que agora têm seu poder mais arraigado localmente e podem contar com dinheiro do Estado para executar manobras políticas para manter o status quo e suas próprias posições.
Às vezes, os confrontos entre Bolsonaro e algumas figuras proeminentes da direita, como o ex-governador de São Paulo João Doria, e o ex-ministro Sergio Moro, pareciam uma ameaça para Bolsonaro. Mas eram principalmente confrontos de personalidade, sem divergências em torno das políticas centrais. As fronteiras entre direitistas “radicais” e “sensatos” foram borradas nesta nova rodada de neoliberalismo.
Bolsonaro planeja empurrar tudo isso em um novo mandato. Sua campanha claramente associa o “empreendedorismo” com a criação de empregos e dignidade – sem nenhuma menção ao combate às desigualdades. A erosão da capacidade do Estado de fornecer bens e serviços públicos será perseguida por meio de mais privatizações. Diz-se que o acesso privado a armas contribui para a segurança pública e, sem surpresa, o voluntarismo é amplamente mencionado em materiais de campanha. Apresentando a família como “ponto de partida” e “ponto de chegada” de todas as ações do governo, Bolsonaro articula o que chama de “caminho da prosperidade”, uma suposta estratégia para o desenvolvimento do país, que se colocaria, diz ele, em oposição à o “ciclo da pobreza” criado pelo PT de Lula.
Lula em um novo Brasil
Compare a plataforma de Bolsonaro com a de Lula. Atualmente o favorito, Lula fala em restabelecer o modelo social e econômico de seus mandatos anteriores, clamando pela reconstrução e transformação do Brasil. Ele ressalta que o governo de Bolsonaro significou a revogação do que o país conquistou nos anos de governo do PT e propõe uma combinação de ações emergenciais e políticas estruturais para reverter tais danos.
O primeiro incluiria o combate à inflação, a renegociação da dívida privada (agora em níveis escandalosos) e medidas para combater a fome generalizada. No nível estrutural, Lula menciona a reindustrialização, o investimento em infraestrutura e habitação, a elevação do salário mínimo e a retomada de seu principal programa social, o Bolsa Família (extirpado pelo atual governo). O comprometimento do PT em aumentar o salário mínimo surgiu por pressão dos movimentos sociais, durante o segundo ano de Lula na presidência em 2004 e é a chave para explicar a transformação da vida de tantos brasileiros naqueles anos.
Desde o início, Lula procurou construir alianças e imprimir um caráter de unidade nacional em sua candidatura ao terceiro mandato. Seu companheiro de chapa é um velho adversário político, Geraldo Alckmin, que liderou o Estado de São Paulo durante vários anos de políticas de austeridade. Nas últimas semanas, a campanha de Lula intensificou as reivindicações de que os comprometidos com a democracia devem unir esforços e garantir sua vitória.
“A ‘maré rosa’ nunca rejeitou o mercado e os governos progressistas trabalharam diligentemente para se posicionar suas economias nacionais dentro da economia capitalista global.”
Mas é crucial considerar que Lula e sua equipe não têm clareza sobre as possibilidades de reimplementar uma fórmula antiga. A campanha tem um apelo “de volta ao passado glorioso” – sem considerar as falhas do modelo social e econômico do PT.
O Brasil de Lula e Dilma Rousseff foi um dos principais países da chamada “maré rosa”, que inundou a América Latina na primeira década do século XXI. Como governos de esquerda e centro-esquerda, a “maré rosa” se posicionou contra a receita do Consenso de Washington de direita. Mas sua relação com o neoliberalismo era mais complicada.
Professando a cidadania inclusiva, esses governos foram capazes de decretar mudanças tangíveis. Por exemplo, no Brasil, a desigualdade entre negros e brancos diminuiu devido às políticas realizadas pelo PT. Mas a “maré rosa” nunca foi sobre rejeitar o mercado e esses governos progressistas trabalharam diligentemente para posicionar favoravelmente suas economias nacionais dentro da economia capitalista global.
Deixando de lado algumas diferenças nas respectivas abordagens dos países, a participação na economia global se deu principalmente por meio da exportação de bens primários para países mais ricos como os EUA, mantendo assim o caráter dependente (e altamente vulnerável) das economias nacionais da América Latina. Particularmente no Brasil, o investimento estatal apoiando “campeões nacionais” resultou em conglomerados de produção alimentícia, como JBS Foods – a maior empresa de processamento de carne do mundo – cujas atividades financeiras representam uma parte crucial de seus lucros corporativos. Os bancos viram suas margens crescerem fabulosamente durante a era petista e a mobilidade social então vista no país também fez com que os mais ricos subissem ainda mais.
Lula e sua equipe estão empenhados em revitalizar o nível federal, insistindo que o Brasil deve explorar seu maior potencial: seu mercado interno, uma fonte de produção e consumo em massa. Mas o mundo de hoje não é o mesmo em que ele subiu ao poder. Ninguém pode realmente dizer se o padrão de desenvolvimento adotado anteriormente – ou seja, usar o crescimento econômico para construir receitas do Estado para programas sociais e sustentar o salário mínimo mais alto – gerará os mesmos frutos. Além disso, o enfraquecimento do Estado por Bolsonaro provavelmente restringirá um novo governo Lula, exigindo uma série de negociações (e concessões) com parlamentares mais empoderados e em um cenário mais desafiador.
Nesse cenário precário, a esquerda foi convidada a dar um salto de fé no apoio a Lula.
A luta não irá acabar
A situação encapsula os dilemas dos movimentos sociais no país nas últimas duas décadas. Apesar de algumas contradições, os governos do PT (e da “maré rosa” em geral) obtiveram ganhos reais. Mas seus anos no poder também significaram a completa desorganização da esquerda através da integração de líderes do movimento no governo, o enfraquecimento das bases do movimento e o desaparecimento de novas lideranças nos movimentos.
O estado dramático da esquerda se resume ao desacordo e à confusão em torno do equilíbrio de mudanças incrementais e estruturais – tornando a esquerda mais ampla e radical subordinada aos movimentos do PT, enfraquecendo sua capacidade de resistir a ataques e reagir. A ascensão de Bolsonaro acrescentou mais elementos neste prejuízo.
Como o governo Bolsonaro promoveu a pulverização do modesto Estado de bem-estar social brasileiro, a sensação é de que a casa inteira está pegando fogo. Mas a esquerda tem sido reativa em vez de proativa, aproveitando a indignação, mas incapaz de construir campanhas substancialmente mais radicais.
Bolsonaro deixou claro que o desafio da esquerda é combinar tarefas cujos os ritmos não coincidem. Por um lado, parar Bolsonaro e seu projeto neoliberal destrutivo é urgente. Por outro lado, é crucial combater a ideologia fortalecida ao longo e através de seu governo e forjar uma alternativa real ao neoliberalismo. Mas esse é um processo que leva tempo.
A frágil posição da esquerda fica evidente no perigo de um golpe ou de alguma interrupção no processo eleitoral por parte dos militares e Bolsonaro. Enquanto ele está fazendo tentativas finais para conquistar setores da classe empresarial e melhorar sua posição entre as mulheres, ele também usou seus últimos dias de campanha para aumentar sua retórica sobre fraude eleitoral, com o objetivo de minar a confiança do público na democracia.
Esse esforço específico de desinformação está em andamento há mais de um ano – de fato, as tentativas de desacreditar as eleições nos Estados Unidos forneceram um modelo para Bolsonaro. No entanto, a capacidade de resistência popular, caso Bolsonaro decida dar seguimento às suas ameaças de rejeitar a legitimidade de uma derrota eleitoral, é difícil de medir. Ao longo de seu mandato, Bolsonaro consolidou um terço do eleitorado. Com o aumento da posse de armas, não é segredo que seus apoiadores podem ir além dos casos de violência física, já vistos neste ciclo eleitoral. Mas como a principal estratégia de Bolsonaro tem sido colocar em dúvida as urnas eletrônicas, qualquer forma de usurpação de poder, caso aconteça, provavelmente se baseará em alegações de má conduta eleitoral.
“Os militares ecoam a tese de que as urnas não são confiáveis e assumiram a tarefa de auditar os votos – a primeira vez que as Forças Armadas participarão do processo eleitoral desde o fim da ditadura.”
Tal empreitada encontra ressonância entre os mais importantes aliados de Bolsonaro neste momento histórico tenso: os militares. Desde a redemocratização no final da década de 1980, as Forças Armadas se redefiniram, afirmando ser especialistas em gestão e logística e o segmento mais eficiente do país. Por meio de tal cobertura, os militares aos poucos conquistaram cargos em governos democraticamente eleitos, desde o de Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990, até o de Dilma Rousseff em 2010.
Com Bolsonaro, o número de militares no governo aumentou dramaticamente, inclusive em cargos-chave, avançando assim a ideia de que os civis não estão aptos para governar e que a democracia, no final, não funciona. Os militares agora ecoam a tese de que as urnas não são confiáveis e assumiram a tarefa de auditar os sistemas de contagem de votos – a primeira vez que as Forças Armadas participarão tão profundamente do processo eleitoral desde o fim da ditadura.
Votar em Lula é uma escolha consequente nesta encruzilhada da história. As chances de ele vencer no a eleição são favoráveis, assumindo nenhuma interferência, e um terceiro mandato dele deve ser comemorado pela esquerda, especialmente considerando os anos de feroz discurso antipetista e anti-esquerda após o golpe contra Dilma Rousseff. Mas mesmo que Lula vença, as perspectivas ainda não são boas. A luta para reconstruir o Brasil vai ser dura e vamos precisar de muita mobilização para superar todos esses impasses.
Sobre os autores
é membro do corpo docente principal e chefe do Programa Praxis, no Instituto de Pesquisa Social do Brooklyn, onde ensina sobre movimentos sociais, raça e teoria social.